terça-feira, 28 de junho de 2011

FOME


Bato na porta, toco a campainha. Me deixa louca ficar esperando. Ainda mais com essa fome toda.
- Pode entrar!
Entro então. Irritada. A voz dele tá vindo lá de cima do quarto, então falo bem alto:
- Cacilda, meu!
- Cacilda Becker, meu!
- Porra, que demora pra atender esse interfone, hein, cara? Tava congelando lá fora! E esse maldito porteiro não acreditava que eu te conhecia.
- Ó, não sobe não que eu tô me arrumando ainda.
- Arrumando o que? A gente vai no boteco aqui na frente, cacilda!
- Cacilda Becker!
- Engraçadinho.
Jogo essa mochila velha em cima do sofá preto. Essa sala toda escura, um cavalete no canto, latas de tinta jogadas por todos os lados. Adoro essa bagunça louca dele. As almofadas no chão, um violão todo pintado e o apelido dele colado por baixo das cordas. Quanto quadro novo nessa parede! Preciso lavar as mãos.
- Ô An-tó-ni-ô. Você ainda não tá pronto porque? Eu te liguei faz meia hora dizendo que vinha!
- Ô Lê-tí-cí-á. Vê se me deixa em paz, hein? Acabei de chegar do trampo.
Entro na cozinha, lavo as mãos com sabonete. Porque ele tem sabonete na pia da cozinha?
- Você lava louça com sabonete líquido de erva-doce? Que fino, hein? Fino da bossa.
- Minha casa tá uma bagunça, Letí-cí-á.
Voz de moleque. Gosto.
Começo a fuçar as coisas. Adoro fuxicar, mexer em tudo. Me dá uma sensação de intimidade, um eu-tudo-posso. Perigoso isso. Quero colocar uma música mas estou com fome.
Quero olhar atrás dos quadros e mudar esse vaso e… virar esse porta retrato pra parede, esse com a foto da japonesa sem graça que ele namora. Só pra provocar. Mas não viro não. Estante.Tenho que virar a cabeça e subir na ponta dos pés pra ler a lombada do “The Best Vinyls of All Times”.
- Estou com fome Antó-ni-ô!
Me deparo com uma caixa preta e uma branca.
- Ai, Antônio, não acredito que você comprou isso!
- Isso o que?
- Os Beatles remasterizados! Estéreo e Mono! Ai, que fabuloso!
- Ô Letícia, não mexe nas minhas coisas por favor? Tira a mãozinha das minhas caixas, hein?
Eu sei que ele nem tá falando sério, vou abrir cada um desses discos e vou querer ter todos.
- Então desce aí, que eu já tô mexendo em tudo.
Abro o “Revolver” e ele vem descendo trotando pelos degraus de madeira clara. Cara de menino velho. Gosto. Cabelos encaracoladinhos. Gosto muito.
- Legal, né?
- Puta merda, nem fala. Tô com uma inveja mortal de você. Mas fala aí, porque comprou as duas caixas, exagerado?
- Porque ouvir em mono, cê sabe… Os caras ouviam em mono, né? Eu tenho que ouvir como os caras ouviam, né? E o estéreo é pra viajar legal.
Essa cara dele de quem não liga pra nada me dá vontade de socar e de beijar ao mesmo tempo. Filho da mãe.
- Você é um filho da mãe, tá sabendo?
- Tô sabendo. Lê, vou fumar unzinho antes da gente ir, beleza?
- Beleza nada, vamos embora que eu tô do avesso de tanta fome e você fuma depois, seu viciado nojento.
Odeio quando fumam maconha na minha frente. Quero morrer de tédio.
- Você não vai mesmo deixar eu dar um peguinha? É rápido.
- Não, porra. Vamos.
Agarro a mão dele e vou saindo pela porta.
- Deixa eu pôr o tênis, pô. Peraí.
 - Fome, fome, fome, fome, tchau Antônio tô indo.
- Caramba, ô menina. Deixa eu calçar aqui.
- Fui, hein.
Ele me dá a mão.
Na mesa do bar, eu detonando um sanduíche de peru com mostarda e ele mordiscando um bolinho de bacalhau que não tá com cara de ser de hoje.
- Acha que pede mais uma Original, Lê?
- Pede.
- Fecha a boca pra comer, desgraça.
Sorrio um sorriso de pão com mostarda e mostro a língua suja. Ele ri. Dente branquinho. Gosto. Pele cor de Bahia. Gosto muito.
- Sabe, tava com saudade dessa sua cara besta. Vou pegar aquele seu livro do Bob Dylan emprestado, tá?
- Vai nada.
Mais duas garrafas e a conta. E esse bar vai ficando um pouco enevoado, aquele enevoado que eu sempre vejo quando ainda não tô bêbada mas também não tô sóbria. Névoa de boteco. A névoa vai misturando os assuntos e é Almodóvar, Chico Buarque, a bunda da Débora Secco, o filme que passou na Tela Quente ontem, aquele dia que a gente foi no museu, uma música que nenhum dos dois lembra o nome, o sebo bem legal lá no centro e como tá bom esse sanduíche, ele me pede um pedaço eu digo não e ele me pede um beijo e eu digo que
- Não, paga a conta aí.
Na rua tá tudo deserto e claro e amanhã eu vou trabalhar, Antônio.
- Mas fica mais um pouco.
Camiseta do Charlie Chaplin. Gosto. Fico.
No sofá, ele tem uma almofada laranja que brilha no escuro. Quero esse apartamento pra mim.
- Letícia, me dá um beijo ou eu vou pegar meu beck.
- O que a japa acha disso, hein?
Sério. Ele sempre fica sério quando eu menciono a japa, mas vai fazer o que se é esse o único assunto que eu não posso falar. Ele sorri enviesado. Gosto muito.
- Do que? De eu fumar?
- É, pode ser.
- Deixa que dela cuido eu.
- E de mim, quem é que cuida?
- Ah, Lê-tí-cí-á. Você não precisa que ninguém te cuide.
O que eu preciso mesmo é parar de querer neguinho maconheiro com namorada japa e disco dos Beatles.
- Me dá um pouco daquela sua vodka?
Ele dá.
- Me dá esse apartamento quando casar com a japa, Antônio?
Levanto, jogo os sapatos num canto, ligo o som bem alto e é Amy Winehouse e agora combina porque bêbada eu já estou. E deixa eu fechar o olho e me balançar, o tapete felpudo embaixo dos pés e
- Lembra daquela vez nesse tapete, Antônio?
Não abro o olho não, mas sinto o cheiro dele no meu nariz. Cheiro de madeira. Gosto. Mas e a japa? Mas e o livro do Bob Dylan? Vou poder pegar emprestado? Posso dizer de novo que foi culpa do álcool? Posso deitar nesse tapete de novo e
Só sei que gosto. Gosto.

sábado, 25 de junho de 2011

As Revoluções Nascem em Noites Estreladas


Eu sou aluna de design de moda. Antes disso, fui psicóloga e trabalhei em organizações não governamentais. Antes disso fui aluna voraz de literatura. E bem antes disso, quis ser astronauta e fotógrafa da National Geographic.

Na adolescência, minhas referências de moda eram revistas da década de 60 e 70, que pertenciam a minha mãe. Sentia que havia perdido uma profunda revolução cultural, a qual eu queria tanto ter presenciado.

Naturalmente, meus interesses se voltaram para esses movimentos de juventude, e no meio do caminho, topei com o Rock. Vou pular um capítulo grande dessa fase para falar especificamente sobre um livro que li sobre aqueles tempos de juventude gloriosa e desnorteada. Aqueles tempos loucos de hippies, descobertas e ousadias que não vemos acontecer hoje.

Ler aquela história pareceu-me surrealmente familiar. No entanto, por ter nascido no tempo e lugar errados, me tornei assombrada por imagens e sensações que nem de longe poderiam ser minhas. Como se algo devesse ter acontecido comigo, num outro tempo e lugar, e por alguma razão, não aconteceu.

Meu pai sempre me diz para me desconectar.
"Let it go", diz ele.
"Let it be", respondo eu

E me pergunto o que aconteceu com os jovens que estiveram lá, no tempo e lugar certos, convivendo com outros jovens que sonharam sonhos tão altos. O que aconteceu com eles? Onde eles estão?

Que tipo de sonhos eles têm agora?

Essa história, espero eu, não tem fim.
Essa revolução cultural será vivida novamente.

Ou alguém acredita ser impossível usar a globalização a favor de uma mentalidade?

Porque somos capazes de pôr nossas diferenças de lado e orar por povos tão diferentes quando eles têm suas vidas devastadas pela força da natureza? Porque choramos com eles? Porque nos importamos?

Uma nova revolução, mundialmente orquestrada, num coro muito mais consciente e presente, está pra nascer. Não vamos precisar de Timoty Larry.
Mas certamente, vamos precisar de um novo Jimmy.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

A Toca das Raposas

Fui ensinada a viver em outro mundo
Onde a grama é verde e os garotos são bonitos
Não aqui

Aqui, jogar abertamente não agrada e nem é útil
Todos tentam ser indispensáveis,
Mas só sinto cheiro de tragédias

Talvez seja pra ser assim mesmo
E há quem não me siga por ser assim
Paciência

também não me impressiono com pouca coisa.

domingo, 10 de abril de 2011

"Falta-me testosterona" ou "Sou tão feminino que nem uma porra de um texto machista eu consigo fazer"




Não sou macho o suficiente pra decidir fazer o que se deve fazer. Não consigo obedecer minha consciência, meus instintos. Sinto-me uma verdadeira fêmea à mercê dos outros, do mundo. Minha parte macho dominador hiberna, feliz. Não mereço meu pênis, meus pêlos pubianos, minha barriga imensa. Se meu pau fosse maior, se a testosterona fosse suficiente na minha vida, talvez fosse realmente masculino.

Ah, quantas coisas faria... Mas não, falta-me macheza.

Músculos.

A confiança na própria força.

Os cds do Mudhoney.

Mas como macho não sou, fico aqui, a ouvir melodias de mulherzinha. Canções em inglês, lamúrias muito bem elaboradas. E choro copiosamente, como uma dona de casa assistindo o último capítulo da novela. Qual a diferença? Nenhuma, meu amigo. Nenhuma...

Resta-me comer a minha própria vagina. Sou uma mina bem gostosinha. Tímida, reclusa...

Aceito tudo muito bem.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Isis, Apófis, Osíris

Depois de ter nascido, esse zine morreu e renasceu muitas vezes. A última morte, nos meses finais de 2010, parece que foi mais violenta, pois poucos se manifestaram. Eu gosto de pensar que as pessoas estão vivendo suas vidas de verdade, resolvendo seus problemas, apaixonando-se e usufruindo do amor; pois o que é a internet se não mais um véu de ilusão sobre a própria Ilusão. Mas aproveitando um fluxo de inspiração e a circunstância de ninguém ter postado algo novo em 2011, faço a estréia do zine nesse ano através de votos de força de vontade para autores e leitores.

93

Entre o caos e a entropia, a paixão
Entre o estabelecimento e a conclusão, a coragem
Entre a emoção e a razão, o rigor
São esses os frutos da árvore: amor, sob vontade.


IIIIIIIIIIIIIIIIIIIIAAAAAAAAAAAAAAAOOOOOOOOOOOO!!!

abraços e feliz 2011!

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Se había perdido en su propia oscuridad.


Ela havia se perdido na própria escuridão. Perdia-se todos os dias num mesmo grito.
Um dia acordou, com os cabelos desgrenhados, e encostou os pés no piso frio. Eram três da madrugada, e soprava um vento gelado entre as árvores que se insinuava pela branca e fina cortina do quarto. Era uma casa de campo grande, isolada do caos urbano, no topo de uma colina bem verde. Durante o dia, assumia uma aconchegante conformação bucólica, mas à noite era simplesmente lúgubre, mas o tom depressivo daquelas sombras a encantava , e à medida que o luar entrava pela janela ela se sentia mais viva.
Porém, naquela noite, não foi assim. Os pés caminharam sobre o piso frio até em frente ao espelho da parede oposta à cama. Ela mirou-se sob a luz do luar que iluminava seus contornos. Seus dois grandes olhos eram duas circunferências brancas em meio à escuridão do recinto. Piscou-os uma vez , e então percebeu com assombro: estava perdida. Absolutamente perdida. Isolada do mundo, excluída dos próprios pensamentos, ela sentia como se fosse um corpo vivo, mas que o coração estivesse trancafiado em alguma outra parte. Ela não se encontrava. Sentia-se como se houvesse penetrado em um perigoso labirinto que a aspirava para um universo cheio de dúvidas. Cheio de receios. Cheio de revoltas.
Repousou uma mão sobre o espelho e notou que o calor da mesma produziu um pequeno contorno de vapor sobre o vidro. Sim, estava viva. Sim. Ela sonhava , mas eram sonhos de asas cortadas, sangrantes. Procurava desesperadamente praias com sóis que nunca se punham, auroras eternas, procurava encontrar pássaros feridos e poder curá-los e soltá-los um dia perto do mar, sorrindo. Procurava sujar as unhas de terra em jardins cheios de flores, lamber dedos sujos de sorvete numa rua qualquer, sorrir sinceramente com alguém, brigar pelo último gole de refrigerante, gritar músicas cafonas dentro de um carro, acordar querendo ver o sol nascer no lugar mais distante e ir com alguém, e gritar com alguém, e festejar com alguém.
Procurava ter os pesadelos mais pueris e os desejos mais loucos de infância, sentir os ouvidos de alguém ouvindo seu coração bater, procurava crescer, procurava saber como era a ilusão das cores. Queria pintar um arco-íris nos olhos de alguém, sentir o suor dele como se fosse tinta, que pintasse seu corpo, que concordasse em ir junto com ela aos mais depravados destinos, onde junto seriam dois perdidos, dois loucos, duas serpentes, duas gotas de sangue, duas crianças. Sonhou com os mais tenebrosos amores e os mais encantadores medos. Queria alguém que a ajudasse a consertar suas bonecas quebradas. Queria alguém que pudesse enxergá-la bem dentro de sua pupila.
E enxergando as próprias meninas chorosas de seus olhos, ela percebeu. Não estava perdida porque não encontrava seu caminho. Mas porque não havia encontrado alguém corajoso o suficiente para percorrê-lo com ela. Se sentía perdida dentro de su propia oscuridad. Se sentía perdida, hasta que él llegó con la luz en la mano.

sábado, 7 de agosto de 2010

Agridoce.


Eles haviam combinado de ver o sol nascer na praia. Ela estava sentada na areia, e ele andava ao longe pela orla. O céu era ainda dominado por azul lápis lázuli preguiçoso da madrugada, e havia um frescor paradisíaco no ar que ela respirava. Era o ar da manhã que ela tanto adorava que fê-la sugerir a ele a verem o sol nascente naquele lugar tão lindo. Segurou um pequeno graveto com suas mãos de menina e desenhou rabiscos anárquicos na areia. Seus pés afundavam os dedos na areia fria enquanto ela estava sentada. A maré estava baixa, e as ondas repicavam pequenas lá longe, muito longe.
Os pensamentos dela voavam em espirais enquanto ela se indagava porque estava ali, porque enfim a vida tinha decidido transformar seus mais débeis sonhos em vívida realidade. Por que, em meio a tanta dor e lágrima e sal no mundo, ela havia sido a escolhida, a escolhida a ser feliz? O seu medo em perder aquela doçura de uma hora para outra era tão grande que ela agarrou aquele graveto como se fosse o seu destino materializado em suas mãos. Olhou o mar, sempre mar, sempre constante. A eternidade de suas ondas a acalmava momentaneamente, até que uma nova onda de pavor não invadisse sua consciência.
Ela observou o corpo dele caminhar pela orla. Ele dava pequenos chutes nas espumas de mar que caíam sobre seus pés e mantinha um ar contemplativo no rosto. Estaria ele exatamente com o mesmo medo que ela? Estaria ele com medo de que uma hora para outra garras de fera rasgassem aquele cenário idílico que os dois haviam construído? Ele se mantinha andando, cabisbaixo, ao lado da água. Agora, o mar soprava um vento frio contra os dois. Eles estavam separados fisicamente, mas unidos pelas mesmas filosofias. Ligados pelos mesmos gritos.
Sua pele branca ficou arrepiada e ela abraçou as próprias pernas. Sua vontade por ele era tanta que ela raspou os dentes na pele de seu joelho. Observou-o com a boca na própria pele, e percebeu, naquele momento, que ela queria tê-lo não fisicamente, mas sugá-lo, absorver sua alma, colocar as mãos em seu coração e banhar-se da essência dele, de tudo que ele emitia. Ele havia lhe dito, numa madrugada enquanto ela dormia : "Nenhum sonho é melhor que essa realidade." Ela nunca lhe contou que havia ouvido aquilo, mas naquela noite ela dormiu derramando uma lágrima em seu travesseiro.
Agora que ela lembrava dessas palavras preciosas, ela não conseguia se conter. Ele jogava um pouco de água fria no rosto, enquanto ela estava chorando. Ela chorava, de soluçar, enquanto ele corria até ela com um sorriso ingênuo no rosto. Conforme ele se aproximava dela e percebeu que ela chorava, o sorriso dele se desmanchou numa expressão de dúvida. Sentou-se ao lado dela:
- Por que chora?
Ela olhou para ele, os olhos rubros de tanto choro, a cabeça repousando sobre os próprios joelhos. Ele entendeu aquele olhar. Desfez aquela posição semi-fetal que ela mantinha com seus braços, e abraçou-a.
- Venha cá. O sol vai nascer. E eu e você vamos vê-lo brilhar.
A cada doce frase que ele soltava, o pânico tomava conta do seu espírito. Ela não conseguia ouvir aquelas palavras e aproveitá-las, cada doce delírio era proseguido de um pavor incalculável de perder aquele encanto. Ela não podia mais reter aquele arranhão dentro de si. Soltou com uma voz suplicante:
- Oh, eu tenho medo...
E sem que ela pudesse imaginar aquela resposta, ele disse, os olhos mais profundos que ela já havia visto:
- Eu também tenho medo. E é por isso que eu trouxe isso.
E tirou de uma sacola uma manga madurinha, fresquinha, a fruta que ela tanto gostava.
- Para você sorrir e se esbaldar .
Ela começou a chorar de novo. Os dois se abraçaram na areia, enquanto os primeiros raios do sol despontavam no céu. Ele segurou os cabelos dela levemente, querendo prendê-la com ele para toda a eternidade. Entre sol, céu, sal e manga, eles eram duas crianças num verão que nunca acabou.