terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Sobre o apego.



Existe um sentimento que, para mim , é talvez mais intenso que o amor. Mais profundo que a paixão. Não que ele seja mais intenso no grau em que ele balança as emoções, tremelica a alma, e colore de vermelho os pensamentos. Seria algo que o inglês chama de infatuation - mas, sem a rapidez que a definição da palavra mostra, esse é um sentimento que vem devagar, toma conta de nós como areia movediça, uma teia sentimental. Esse sentimento é o apego.

O apego não surge de repente. Ele aparece com os anos. Diferente do amor, que é algo sublime, Divino e incontestável, que pode surgir automaticamente (no caso amor maternal , paternal e fraternal) ou com o tempo (em relacionamentos duradouros) , e também diverso da paixão, que é repentina, arrebatadora e dínamo de loucuras, o apego é assim: chega em sua casa silenciosamente, com sua pequena maleta, e vai espalhando seus pertences pela sua mobília. Você nem nota. Dentro de sua casa, pessoas entram e saem, convidados derramam vinho no tapete - e ninguém nota as fotos que ele pendurou nas suas paredes. Ele dorme na sua cama, sem que você saiba. Ele faz tranças nos seus cabelos enquanto você sonha acordado, sem perceber. Mas um dia , quando você se olha no espelho após ter tomado sua xícara de café, vestido de pijama e bom senso , você pensa - eu me apeguei - e ZÁS , eis que surge ele, com uma imponente máscara preta de carnavais venezianos. O APEGO, em negrito e maiúsculas.

Inicia-se então uma jornada de "aperto no peito" (existe outra definição melhor para "aperto no peito" do que "aperto no peito"? Creio que não.) e saudades. Porque o apego é assim. Ele dói. Ele é uma coleira invisível que te amarra a pessoas, fatos, lembranças, objetos, manias irritantes suas e dos outros também. Por mais que não se goste daquilo ao qual se é apegado, não adianta - você se apegou. E como a raposa de Saint-Exupéry já afirmou sabiamente em O Pequeno Príncipe , "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Tal frase não poderia definir melhor essa sensação de angústia, dor, aprisionamento, delícia e nostalgia que é o apego. É uma flor que você é obrigado a regar todos os dias, por vezes regando com carinho , outras vezes com desgosto.

E é devido a esse apego, a essa algema que une nossos corações a pequenas migalhas de eternidade espalhadas pelo cotidiano que nos faz manter no armário aquelas caixas abarrotadas de cartas. A guardar o frasco vazio daquele perfume antigo. A continuar passando por aquela rua, só para ver o jardim tão bem cuidado daquela senhora. A permanecer junto a alguém, mesmo que as coisas não estejam tão bem , mas simplesmente porque você não consegue se imaginar acordando sem ver ao seu lado o travesseiro docemente amassado por onde ela se deitou. A continuar morando com ela, porque é aquela espuma de shampoo que ela deixa no chão do box que te faz sentir vivo. A permanecer unida a ele, porque são as mãos dele, magras, segurando o volante, que fazem você olhar para as estrelas e agradecer a Deus e ao Infinito por estar ali. É aquela imagem dele , sorrindo, recolhendo com aquelas mãos o pó de café que ele derramou sobre a mesa que te fazem suspirar de júbilo nos momentos à sós.

Piegas , banal ou sensato, o fato é que a verdade, para mim, é só essa. Quando se tem apego, não existe mais a carne puramente carne, o desejo simplesmente desejo, o amor somente amor . Você cativou a raposa. O príncipe te cativou. Um liame , curto e imperceptível, te liga àquelas memórias, àquelas pessoas, àqueles rostos. Anos se passarão, e mesmo se o contato com essas pequeninas almas ficar perdido , elas estarão lá, embalsamadas nas nossas humildes sinapses. Um segredo: você pode ter desaparecido da minha vida, mas com as minhas lembranças, ah, eu olho para seus olhos todos os dias...

É o apego que, muitas vezes, deixa ainda mais árida a dor de um fim de relacionamento. Quando o caminho do casal se bifurca, resta o medo: "Eu nunca mais vou vê-lo? Nunca mais conversaremos?" Não é a vontade de voltar para os braços para a pessoa. Não é desejo. Porque o apego é a revolta. É a inocente indignação de não poder, nunca mais, ter com ela os mesmos momentos que haviam antes. Nunca mais ver comédias antigas na televisão. Nunca mais brigar pelo último chocolate. Nunca mais ver o sorriso dela ao entrar no seu carro. Nunca mais conversar com ela, tagarelar com ele, a menor banalidade que seja. Não saber mais como anda a vida dele. Os dias dela. Se está contente. Se cortou o cabelo. Se aquele arranhão sarou. Meu Deus, nunca mais ver a cicatriz daquele arranhão. Nesse momento, o arranhão torna-se mais monumental que as pirâmides do Egito. O arranhão, naquele joelho, guarda nele todas as suas saudades. Todas as suas vontades. Pessoas que não voltam mais. Tesouras que não voltam atrás.

Certa vez pedi um cappuccino em um balcão, sorrindo. E o barista me disse: "O café vai bem com um sorriso." E ao me entregar a xícara de café, notei que ele havia desenhado na espuma um pequeno sorriso, e embaixo, lia-se: SMILE. Aquele pequeno presente, perecível, desmanchável em apenas uma volta com a colher, foi, para mim, a tradução do apego. Em um só gole, o sorriso e a palavra se desmanchariam em café e leite, e aquele momento terminaria tão logo quanto a bebida. Pudesse eu eternizar aquele café! Fosse aquilo um flerte ou uma mera gentileza, o barista jogou ali em minha xícara pequenas migalhas da eternidade dele , que acabaram perdidas em espuma. Disse a ele o quanto tinha achado tudo aquilo belo e doce, tomei a minha bebida, paguei, e fui embora, com a quase certeza de que nunca mais o veria novamente, tampouco a espuma.

E tudo perdeu-se em espuma. A espuma do leite, a espuma do mar, a espuma do shampoo, a espuma do beijo. Nesse mundo de espumas, somos todos príncipes e raposas algum dia. Apegados àquele arranhão.