segunda-feira, 22 de março de 2010

Les oiseaux ne sont pas des oiseaux.

Marie fumava seu melhor cigarro , sentada à mesa minúscula de um café igualmente diminuto de Montmartre. Observava o mercado de quadros e livros velhos que se estendiam por toda a calçada oposta. Uma criança indiana chorava violentamente, porque queria uma revista de Asterix, enquanto a mãe, provavelmente sem dinheiro suficiente para comprar criações de Uderzo e Goscinny, observava um jogo de xícaras com pires lascados na barraca ao lado, indiferente ao clamor do filho.

Um cão que poderia ser confundido com um setter inglês tinha uma pata dianteira machucada e lambia a valeta da calçada , esperançoso que o cimento pudesse ser comestível. Marie riu, e ao mesmo tempo sentiu-se constrangida em ter capturado aquele momento de pura decadência daquele animal. Marie tinha a péssima mania de humanizar animais, principalmente cães e pássaros. Acreditava que eles também tinham planos e objetivos , e que seus sonhos caninos e orníticos pudessem ser frustrados tais como os de seus parentes humanos. O cão fixou seus olhos moles para ela, como se pudesse sentir que ela estava observando seu débil comportamento na calçada. Marie sentiu um golpe no estômago. Sentia-se um monstro por ter servido de platéia risonha para o triste espetáculo que o animal protagonizava.

- Maman , je vous en prie, le bande-dessinée!

O menino indiano ainda queria o gibi. Marie achou aquela obstinação por um mero gibi de um heroísmo nato. Quando criança, Marie tinha poucas obstinações. Desistia do que queria ao primeiro "não" que ouvia do pai . Não tinha forças para insistir. Não tinha paciência para relutar.

O cão continuava naquela mesma calçada, dessa vez observando um pássaro que voava de árvore em árvore, em um ritmo frenético. Marie pôde sentir, tal como o cão, a extrema arrogância que o pássaro exibia por farfalhar livremente entre as árvores. Era a perfeita analogia da pirâmide social : o cão com a pata ferida que lambia a valeta, e o pássaro que batia suas as asas com uma festividade cruel sobre seus olhos. O cigarro de Marie havia acabado e apagado entre seus lábios. Pegou o último cigarro que restava no maço. O clique do velho isqueiro Zippo confundiu-se com um rouco "Salut" que ela já havia ouvido em algumas outras situações.

- Martin. Salut. - ela fitou aquele rapaz alto, moreno, com uma leve barba e óculos de aros finos, ofertando-lhe um quarto de sorriso.

- Salut. - Ele disse de novo, esperando que ela tomasse alguma atitude socialmente aceitável.

Ela acendeu o cigarro de novo, porque com a fria saudação, o fogo se havia esvaído. Um novo clique do Zippo, e um novo chamado daquela voz rouca.

- Posso.... posso me sentar com você?

Marie balançou a mão que segurava o cigarro em direção à cadeira . Direcionou novamente o cigarro à boca, segurou-o por uma fração de segundos entre seus dentes, para depois finalmente incorporá-lo entre seus lábios e tragar o morno tabaco. Seu pequeno êxtase nicotínico acabou quando ouviu uma risada.

- Marie, ma chérie Marie, você sempre fez isso, não é mesmo?

Ela ainda fitava o cão do outro lado da rua, e virou-se para aquele rosto masculino.

- "Isso" o quê?

- Segurar o cigarro com os dentes uns segundos antes de tragá-lo de verdade. Eu sempre observei esses pequenos detalhes em você , sabe.

- Isso é psicopatia, sabe. - ela soltou a fumaça tanto pela boca, como pelas narinas.

Marie zombava de Martin, chamando-o de excêntrico e psicopata, mas na verdade , era aquela mania dele de observar seus microscópicos detalhes que fez com aquela se encantasse por aquele homem. Marie sempre julgou ser um quadro realista. Uma pintura comum, um rosto comum, mas ao ser observado a 15 centímetros com olhos semi-cerrados, detalhes incríveis poderiam ser vistos, pequenos segredos que construíam seu innerself, pinceladas vertiginosas que criavam uma pessoa. Marie acreditava que só poderia ser verdadeiramente admirada se fosse vista bem de perto. Martin sempre a viu muito de perto, com sua lupa invisível.

Martin gargalhou:

- Ah, Marie!

Ela fitou Martin tão profundamente que ele pôde sentir sua retina sendo analisada por aqueles olhos verdes. Entendeu a mensagem daquele olhar ; ele deveria falar logo porque afinal estava interrompendo aquele precioso momento de solitude da moça, para podê-la então deixá-la em paz.

- Estava indo almoçar, quando vi você aqui, fumando sob esse sol infernal. Resolvi ver se está tudo bem com você.

- Está tudo bem. - ela notou que sua taça de vinho estava vazia. Ele, com sua capacidade irritante de ler os pensamentos dela, também notou o mesmo.

- Pedirei uma garrafa de Chardonnay para nós dois. Você quer almoçar? - Marie continuou observando o cão e o mercado, e ele calou-se, já dirigindo um aceno para o garçom.

Ele voltou-se novamente para ela.

- Faz tanto tempo que não nos vemos. Um dois anos, penso eu.- sua tentativa de dialogar com Marie era tão débil quanto as lambidas do quase-setter inglês.

- Fico feliz em saber que você ainda sabe contar. - ela tomou um gole do vinho, demoradamente.

- Ah, maman! La BD, maman, LA BD!

Martin observou o menino indiano que implorava, com um francês sofrível, para que a mãe comprasse-lhe o gibi do Asterix. Riu abertamente:

- Esses imigrantes deviam se colocar no lugar deles, ao invés de quererem ser franceses e ler o que franceses lêem.

Marie precisou fazer um esforço maior para conseguir deglutir aquele gole de vinho. Mesmo assim, seu esôfago se contraiu em demasia, e ela sentiu uma forte dor compressiva na garganta.

- O que você disse? - ela fitou-o , com os olhos verdes arregalados.

- Marie, esses indianos, coitados. Estão longe de ser parecer com um francês, fisicamente falando. E querem ter a mesma cultura de um francês. É de dar pena.

- Eu não consigo acreditar que um estudioso de sociologia e direito como você possa ter um pensamento tão imbecil... Minto. Eu consigo acreditar. Um pensamento assim, vindo de você, pouco me espanta. - Ela tragou mais uma vez o cigarro, dessa vez sem segurá-lo com os dentes antes da tragada.

- A diferença entre eu e você, Marie, é que eu não sou hipócrita, nem demagogo. Convenhamos, aquele garoto nunca vai entender o que é o legado cultural e histórico da França. - Martin já havia pedido seu prato, mas Marie não o acompanhou no pedido.

- A diferença entre eu e você, Martin, é que você é absurdamente patético. Uma pessoa pobre em termos de maturidade. Você não tem argumentos. Você só tem frases patéticas, mas nenhum argumento que justifique todos os seus impropérios.

- Desse jeito, você me lembra do jeito com que falava comigo quando estávamos juntos. - ele riu.

- Eu falava desse jeito com você exatamente pelo fato de estarmos juntos. E estou falando desse jeito novamente agora , porque infelizmente estou cara-a-cara com você outra vez. - ele parou de rir.

- Marie, veja só... Eu... Eu não gostaria de remoer o passado. Eu queria aproveitar a oportunidade para lhe dar uma ótima notícia.

Ela encarava a ponta acesa do próprio cigarro, os olhos vesgos.

- Vou me casar no fim do ano. Você está convidada.

O menino indiano, agora com lágrimas secas escorridas pelo rosto, começou a seguir a mãe a uns 20 passos de distância. Concluía, por fim, que não ganharia qualquer gibi, de qualquer autor que houvesse.

- Parabéns. - respondeu, friamente.

- Você não vai?

- Por que deveria ?

- Você foi uma parte muito importante da minha vida, Marie. É certo que gostaria que você fosse.

- É certo que não fui, de forma alguma, uma parte importante. Porque se um dia houvesse sido, você não haveria me trocado pela Anne. Não que isso me preocupe ou me torne triste, mas é apenas uma constatação lógica para provar a falta de importância que eu tinha na sua vida.

- Marie, se não funcionamos como casal, pelo menos funcionamos como amigos. Por favor, vá. Anne ficaria contente.

Marie devolveu à mesa a taça de vinho que estava encaminhando à boca. O pássaro que serpentinava arrogantemente sobre a cabeça do velho cão , agora também piava agudamente, para o desespero auditivo tanto de Marie, como de seu platônico amigo canino.

- Você vai se casar com ela?

- Sim. No fim do ano. - Martin tinha deleite em repetir que seria, afinal , no fim do ano. Como se fosse uma cronologia maligna para Marie, que indicasse a ela que em um número certo de dias ela teria, então, de admitir que havia perdido para Anne a conquista do coração de Martin.

- Veja só como a vida é irônica.

- C'est la vie, ma chérie Marie.

Ela segurou violentamente o pulso de Martin. Odiava ouvi-lo proferir aquela frase. Era a frase que ele costumava dizer logo após afirmar: "Eu te amo. Fortemente. E nunca vou deixar de te amar. C'est la vie, ma chérie Marie." Era a frase que ela mais adorava quando estavam juntos, e agora, era a frase que emoldurava a mentira, o engano, a revolta.

- Nunca mais diga essa frase perto de mim de novo, seu estúpido.

Martin, que agora adquiria uma coloração púrpura, libertou seu pulso das mãos de Marie e ajeitou a gravata nervosamente. Agora era ele quem examinava a retina da moça:

- É por isso que larguei você. Sempre inteligente, sempre esperta, sempre com o melhor dos caráteres e a melhor das intenções. Isso me cansava profundamente.

- Como é?

- É isso mesmo. Eu me cansava em ver o quanto você sempre quis ser perfeita, em vê-la progredir, enquanto tinha de permanecer afogado na sua medíocre sombra.

Martin começava a piscar freneticamente , exatamente como fazia sempre que ficava nervoso. Marie levantou-se, e já segurando a bolsa, observou que Martin , com o rosto excessivamente vermelho, já tinha garfo e faca em punho, mesmo com o prato vazio à frente, como uma criança tola que espera ardentemente pela comida.

- Você não estava afogado na minha "medíocre sombra". Você se afogou na própria mediocridade. E continua debatendo-se na água todos os dias. - e apagou o cigarro no prato vazio de Martin.

Segurando-se para não derramar um grito choroso , ela caminhou lentamente até a banca de gibis à sua frente. Comprou uma revista de Asterix e Cleópatra, enquanto tinha a desagradável sensação de estar sendo observada por Martin do outro lado da rua. Enquanto pagava a revista, sentiu um pequeno peso macio repousar sobre sua sandália. Olhou para baixo. O cão de olhos moles encarava-a com sua moleza costumeira, com sua pata machucada sobre o seu pé. Depois, como se estivesse verdadeiramente constrangido em observá-la, ele desviou o olhar, e tornou a encarar o asfalto.

Marie soltou um alto soluço e duas grossas lágrimas caíram de seus olhos. Deixou o troco com o vendedor da banca, e colocou o velho cão no colo. Segurando o com um braço e a revista com o outro, correu arfando em direção ao ponto de ônibus, até conseguir entregar a revista ao franzino menino indiano. Fitaram-se , enfim , os três. Todos com os olhos moles.